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sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

As mutações de Joan Sutherland

Pode parecer uma certa paranóia, mas depois de eu ter ouvido umas 70 gravações completas com Joan Sutherland, eu penso existirem várias vozes ''diferentes'' ao longo dos anos. É algo certamente sutil, uma vez que a qualidade do timbre foi sempre a mesma, extremamente distinta de qualquer outra voz dos tempos recentes, o que justifica a voz dela ser quase que instantaneamente reconhecível. No entanto, mesmo para quem não ouviu muita coisa dela, as mudanças são bastante audíveis. Sendo bem ''picuinhento'' mesmo, diria que dá para reconhecer 8 fases na carreira de Sutherland, sem nenhuma mudança brusca, mas sim evoluindo de um para o outro com bastante sutileza (sinal da longevidade vocal de Sutherland).

Então vamos lá!

1947 a 1956
Os anos de aperfeiçoamento


Um período inicial em que ela se espelhava em sopranos dramáticas (leia-se, principalmente, Kirsten Flagstad, seu maior ídolo vocal) e não possuía ainda nenhuma certeza de qual repertório interpretar. O timbre refletia essa indecisão: ora extremamente leve, claro e brilhante, como o de uma soprano lírico-coloratura; ora escuro, aveludado e relativamente metálico, como o de uma soprano dramática em formação.

Sutherland era ainda uma artista em formação em meio a opiniões diversas. Os diretores do Covent Garden achavam que ela era uma soprano dramática e deveria seguir para o repertório de Wagner e Verdi; sua mãe, ela própria uma mezzo que não seguiu a carreira, insistia que ela era uma mezzo; e Richard Bonynge, com quem ela se casou em 1954, tinha certeza absoluta de que ela era a soprano dramático-coloratura que há tanto todo mundo buscava (claro, já tinham Callas, mas isso é outra história...). Aqui vocês podem ouvi-la em um de seus mais antigos (talvez até o mais antigo) registros gravados, cantando One day when we were young, de J. Strauss II, em 1948 (aos 22 anos e o timbre já era completamente sutherlandiano!).


Após ganhar uma competição de canto na Austrália, a jovem Sutherland migrou para a Grã-Bretanha. Seu primeiro papel lá foi Giorgetta, de Il Tabarro, no Royal College of Music, seguida pela Primeira Dama, de A Flauta Mágica, no Covent Garden. Durante seus anos de aprendizado no Covent Garden, Sutherland cantou de tudo: Aida, Amelia (Un Ballo in Maschera), Helmwige (A Valquíria), Antonia (Os Contos de Hoffmann), Agathe (Der Freischütz), Pamina (A Flauta Mágica), Condessa de Almaviva (As Bodas de Fígaro, foto ao lado) e vários outros. Ela também cantou Brangäne numa no ato 2 de Tristan und Isolde sob a regência de Sir John Barbirolli, assim como Vitellia em La Clemenza di Tito para a BBC, mas essa gravação está até hoje desaparecida (alguns dizem que a BBC a destruiu, o que seria uma tremenda sacanagem!).

A voz de Joan Sutherland possuía uma extensão vocal raríssima, indo desde o Sol2 até o Fá5. Segundo ela própria, no entanto, atingir o Fá5 foi sempre uma tarefa difícil para ela, embora ela tenha emitido essa nota, pelo que se sabe, em algumas ocasiões (incluindo uma La Sonnambula nos anos 60 em Londres).

Em 1955, Bonynge convenceu o Covent Garden a escalá-la para um papel de coloratura. Sutherland ganhou Olympia, de Os Contos de Hoffmann, e foi um tremendo sucesso. Sua voz, aliada ao ótimo senso de humor, ganharam a platéia. No fim desse período, Sutherland começava a se firmar como uma promissora soprano coloratura. Sutherland interpretaria ainda algumas vezes Eva, de Die Meistersinger von Nuremberg, mas, após 1958, abandonou o repertório romântico alemão, a não ser em um álbum de árias de Wagner em 1979 (ouça sua "Du bist der Lenz", de Die Walküre).

Sua voz, igualmente, alternava bastante: desde uma performance vocal agilíssima, flexível, articulada e lírica, embora com toda a potência típica de sua voz, como na ária
"No, che non sei capace", de Mozart, cantada com todo o virtuosismo e a a alegria de cantar necessários - por gravações como essa, percebe-se que a futura La Stupenda já estava preparada desde muitos anos antes da consagração; até uma performance digna de uma jugendlichen-dramatische Sopran, tipicamente romântica alemã, na qual sua voz se tornava mais metálica e aveludada (bem como relativamente velada no registro médio como voltaria a ser nos anos 70), comandando todo o canto com um legato impecável e uma grande homogeneidade de timbre, como em sua Euryanthe,ambas cantadas no mesmo ano de 1955.

Tecnicamente, dá para perceber, pelas suas gravações mais novas, que ela ainda não sabia explorar muito bem os tons e cores da voz para efeito expressivo ou de enriquecimento da linha vocal, o que ela desenvolveria nos anos seguintes. Sutherland era então uma jovem muito tímida, que não sabia se portar no palco com grande presença, o que ela desenvolveria também nos anos seguintes, uma vez que ela não era uma atriz nata.

O frescor da voz, combinado com certos tons metálicos e mais velados, já tornam a voz de Sutherland bastante distinta, sendo interessantíssimo notar como mesmo com pouco mais de 20 anos seu timbre já era bastante reconhecível. A exuberância redonda e aveludada do timbre já aparecem nas gravações de árias para soprano lírico-spinto e dramática, bem como o brilho e a incrível pureza são notórias em suas gravações de árias para coloratura. A impressão que se tem é a de que Sutherland precisava apenas ganhar experiência e lapidar mais sua inteligência musical para atingir o apogeu vocal e nada mais.

TRECHOS EM ÁUDIO (em ordem): "One day when we were young", de J. Strauss II - 1949; "Non più di fiori" (La Clemenza di Tito) - 1956; "Ich bin der erste Sängerin" (Der Schauspieldirektor) com Naida Labay e Alexander Young -1957; "Du bist der Lenz" (Der Walküre) - 1979; "No, che non sei capace", de Mozart - 1955; "Göcklein im Tale" (Euryanthe, de Weber) - 1955.

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