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terça-feira, 30 de janeiro de 2007

1971 a 1977

Um frutífero final de apogeu


Entre 1971 e 1977, Joan Sutherland viveu os anos finais de seu apogeu vocal e certamente obteve máximo aproveitamento. Nesse curto período, a australiana teve várias chances de provar que artista completa ela era, o que ela fez e refez várias vezes. A voz, então, começava a adquirir mais peso à medida que a soprano envelhecia, bem como a maturidade artística se revelava cada vez mais surpreendente.

Esses sete anos de carreira foram também extremamente produtivos no que se refere à diversificação do repertório regular de Sutherland, que adicionou novas encarnações célebres à sua trajetória: as quatro heroínas de Os Contos de Hoffmann (1970), Maria Stuarda (1971), Lucrezia Borgia (1972) - foto ao lado -, Rosalinde em Die Fledermaus (1973), Esclarmonde (1974) - ópera redescoberta após décadas por Bonynge e reapresentada especialmente para Sutherland -, Leonora de Il Trovatore (1975), Hanna Glawari de A Viúva Alegre (1976), Suor Angelica (1977) e Sita de Le Roi de Lahore (1977), além de sua legendária interpretação de Turandot, infelizmente feita apenas em estúdio. Os anos finais do auge sutherlandiano foram definitivamente um belo finale para seu glorioso ápice vocal, no qual a voz, a musicista e a intérprete estiveram completamente afinados, não faltando a nenhuma dessas facetas nenhum recurso que a outra poderia oferecer.

Em 1972, Sutherland embarcou em um ambicioso projeto de gravar Turandot, de Puccini. Uma soprano coloratura cantando um dos mais marcantes papéis escritos para soprano dramática? O resultado, como se esperava (ou não), foi espetacular. Adaptando-se por completo ao estilo verista, Sutherland mostrou sua voz portentosa com um timbre dramático, eventualmente um pouco metálico e muitíssimo expressivo, além de uma dicção do italiano novamente claríssima. Joan Sutherland, algum tempo depois, admitiu que gostou tanto da gravação que cogitou interpretar Turandot nos palcos, mas preferiu, depois, deixar para os fãs apenas a melhor impressão dela nesse papel.

O instrumento vocal de Joan Sutherland havia sido sempre bastante volumoso, amplo e rico em harmônicos, características que logo de cara demonstravam que ela não era uma soprano coloratura típica. A partir de 1971, o registro médio - que sempre dera a impressão de ser envolvido por um veludo e uma redondez homogênea quase transcendental - ganhou um tom que marcaria a Sutherland da década de setenta: as linhas vocais nesse registro ganharam mais vibrato, tornaram-se mais penetrantes e, até mesmo, mais ''envolventes'' que antes. Esse registro médio mais dramático possuía uma capacidade expressiva bem mais intensa que o do período anterior, que poderia ser considerado uma enorme coluna vocal bastante envolvente e rica, mas também extremamente homogênea. O timbre se tornava agora mais heterogêneo, com um vibrato que, até 1976, só fez tornar o canto de La Stupenda mais pungente e/ou sedutor.

O tom velado de certas notas médias, que já aparecera no início do auge, foi ficando cada vez mais freqüente nas passagens mais graves do registro médio, mas jamais chegando a atrapalhar e fluência melódica, como aconteceria nos anos 80. Por outro lado, os graves passaram a ser emitidos com maior solidez e naturalidade no passaggio, o que favoreceu suas interpretações de papéis puramente dramáticos, como Lucrezia Borgia, Esclarmonde (foto) e mesmo Norma, que ganhou mais intensidade e ferocidade no canto.



Quanto ao registro agudo, permaneceu brilhante, amplo, absurdamente flexível e firme. Uma comparação com as gravações do início dos anos 60, no entanto, prova que ele já começava a perder parte do estrondoso volume que antes possuía, embora, para falar a verdade, mesmo pessoas que ouviram Sutherland em 1989/1990 comentem que suas notas agudas eram sempre imensas. É possível perceber também que as notas ficaram mais penetrantes (assim como o timbre por completo) e menos redondas, e aquelas famosas notas estratosféricas ganharam um tom mais ''afiado'', linear e, em comparação com as gravações de até o fim dos anos 60, um pouco menos vibrante. Se, nos anos 60, havia uma pequena distinção entre os agudos claros e prateados e o registro médio mais escuro e aveludado, a voz dos anos 70 já possui uma maior igualdade de timbre entre todos os registros.

No fim dos anos 70, apareceria ocasionalmente uma passagem mais brusca para os agudos, que logo começaria a ser (sutilmente) acompanhada de uma espécie de "ha" como intermédio entre uma linha vocal mais grave e a nota desejada (uma das características típicas da Sutherland dos anos 80!).

A partir de 1975, a voz tradicionalmente ''dourada'' e cremosa começaria a ficar um pouco mais "seca" e um tanto mais escura e velada (o que, acreditem, não foi necessariamente uma perda), favorecendo as interpretações de personagens maduras, para as quais sua voz se tornaria ideal. Essa voz mais heterogênea e vibrante certamente contribuiu para que Sutherland começasse a adentrar com sucesso no verismo, cantando com sucesso Turandot em 1972, Ah-Joe (em L'Oracolo, de Franco Leoni) em 1975 - ambas em estúdio - e Suor Angelica em 1977 (uma interpretação emocionante e audaz imortalizada em estúdio em 1978 com Christa Ludwig como a Zia Principessa). A perfeita adequação estilística de Sutherland num repertório completamente distinto do Bel Canto foi uma prova definitiva de sua maestria técnico-interpretativa. Uma pena ela não ter interpretado ou ao menos gravado uma Tosca ou uma Cio-Cio-San nesse período!

Com o novo timbre, sua voz não era mais tão ideal para jovens ingênuas, como Gilda, quanto para heroínas trágicas, como Lucrezia Borgia. Por outro lado, a verdade é que, com a habilidade completa de Sutherland para modelar sua voz de acordo com as necessidades da música, seu timbre podia soar tão homogêneo, lírico e brilhante quanto nos anos 60 (prova disso é sua fantástica Marie, de La Fille du Régiment, que continuou tão graciosa quanto antes) - mas jamais jovialíssimo e claro como nos anos 50 e início dos 60. Além disso, a versatilidade de uma artista como Sutherland supera qualquer limitação ou característica vocal. Um de seus grandes feitos, na década de 70, foi a interpretação das três heroínas de Os Contos de Hoffmann: Olympia, cantada com uma voz agilíssima, leve, jovial e homogêneo (efeito do canto às vezes "mecânico" como o de uma boneca é incrível!); Giulietta, com um timbre apropriadamente mais escuro, rico e envolvente; e Antonia, cantada com uma voz spinto, aveludada, lírica e pungente.

Como atriz, do ponto de vista vocal e cênico, Sutherland não tinha mais a mesma habilidade de retratar personagens joviais e inocentes, mesmo porque não possuía mais o physique du rôle de papéis como Amina e Lucia. Nos anos 50 e 60, ela tinha certamente sido uma das intérpretes ideais daquelas moças sofredoras tão caras ao Bel Canto, pois, embora não fosse (assumidamente) uma atriz nata, havia aprendido a ter uma atuação sempre elegante e sutil. Sua presença de palco sempre foi portentosa, tanto pela sua altura quanto pelo seu carisma dentro e fora do palco.

A atuação de Sutherland, ao menos do ponto de vista vocal, ganhou bastante em intensidade e ênfase nos anos 70, especialmente à medida que ela foi adentrando no repertório de heroínas trágicas do Bel Canto.A prioridade dada à fluência melódica e à expressividade que imbuía naturalmente a música, que norteou as interpretações sutherlandianas nos anos 60, teve que ceder um certo espaço ao uso de recursos dramáticos com a palavra e com a voz (sem jamais distorcer nenhuma linha vocal por mero efeito expressivo, como era de se esperar em Sutherland).

Alguns de seus mais perfeitos exemplos de dramatismo, nesse período, estão na cena da confrontação de Maria Stuarda e Elisabetta I, talvez a mais impactante já gravada (ainda mais se considerarmos que Sutherland blasfema cantando belissimamente!), nas árias de Esclarmonde (um desafio vocal e dramático sem igual na carreira de Sutherland) e na cena da morte de Suor Angelica.


TRECHOS DE ÁUDIO (em ordem): "In questa reggia" (Turandot) - 1972; "Und ob die Wolke" (Der Freischütz) - 1964; "O nube che lieve" (Maria Stuarda) - 1975; "Tranquillo ei posa" (Lucrezia Borgia) - 1977; "Miserere" (Il Trovatore) com Pavarotti - 1976; "Esprits de l'air" (Esclarmonde) - 1975; "Ah, vieni al tempio" (I Puritani) - 1973; "Ah, vieni al tempio" (I Puritani) - 1963; "Era desso il figlio mio" (Lucrezia Borgia) - 1977; "M'odi ah! m'odi" (Lucrezia Borgia) - 1977; "Tutto ho offerto" (Suor Angelica) - 1978; "Par le rang et par l'opulence" (La Fille du Régiment) - 1973; "Les oiseaux dans la charmille" (Os Contos de Hoffmann) - 1972; "Malheureux, tu ne comprends pas" (Os Contos de Hoffmann) - 1972; "Elle a fui, la tourterelle" (Os Contos de Hoffmann) - 1972; "Perfido! Vanne, sì, mi lascia" (Norma) - 1972; "Figlia impura di Bolena" (Maria Stuarda) - 1975; "Regarde-les ces yeux" (Esclarmonde) - 1975; "Ah! son dannata!" (Suor Angelica) - 1978.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

1963 a 1970

O clímax da carreira



É entre 1963 e 1970 que Joan Sutherland se torna definitivamente La Stupenda, isto é, uma diva consagrada, madura e, como não poderia deixar de ser, criticada. Todo apreciador de Ópera sabe bem disso: o primeiro sinal de que uma cantora veio para ficar é ela receber muitas críticas.

No caso de Joan Sutherland, sua consagração mundial coincidiu não só com uma mudança do timbre, mas também com uma marcante piora da dicção, que era antes claríssima como a de poucos cantores. Como, reconhecidamente, não havia problemas vocais para se reclamar, os detratores da soprano dedicaram anos a dizer que era impossível entendê-la.

A australiana foi também criticada por não possuir o magnetismo nem o dom dramático inato da diva grega Maria Callas, o que, convenhamos, foi uma tremenda perda de tempo e de prazer, uma vez que Sutherland não tinha nem mesmo a intenção de alcançar o estilo interpretativo de uma Callas. Nem todos souberam apreciar a presença de palco mais serena e "clássica" de Sutherland, que, no entanto, era uma forma de expressão altamente coerente com o estilo belcantista e válida dramaticamente, e a acusaram de fria ou até de entediante. Sua expressão mais introvertida e elegíaca, no entanto, acabou funcionando, e não é à toa que ainda hoje quase toda Lucia veste branco, cobre-se de véu e sai correndo pelo palco enquanto canta com o acompanhamento da flauta...

As críticas a Sutherland, no entanto, foram definitivamente abafadas pelos elogios que ela recebeu em todas as casas de Ópera em que ela se apresentou. Entre 1963 e 1964, a voz de Sutherland completou sua mudança: mal comparando, pode-se dizer que a voz deixou de ser prateada e cristalina e passou a ser dourada e redonda. A voz não transmitia mais a jovialidade, a ingenuidade e a inocência que fizeram dela, em termos vocais, a mais crível das Lucias e das Aminas, mas era agora mais rica e possuía um tom ideal para momentos e personagens melancólicos ou nostálgicos.


O registro médio ganhou cores escuras e morbidezza, tornando-se não raro velado nas notas mais graves, mas também adquirindo um tom amplo e redondo extremamente atraente e que lhe conferia até mesmo uma voz mais sedutora para as personagens românticas, embora menos jovial.

Por outro lado, os agudos permaneceram brilhantes e ricos, talvez um tanto mais homogêneos e redondos que antes. Dona de uma habilidade impressionante no registro agudo, Sutherland podia emitir uma imensa variedade de agudos sutilmente diferenciados através da cor, do volume ou do vibrato, daí muitos dizerem que ela utilizava sua voz como um violinista utiliza seu violino. Para papéis dramáticos, Sutherland também consegue emitir agora agudos mais trumpet-like (algo como ''semelhante a um trompete''... maldita língua portuguesa que dificulta tanto a criação de novos adjetivos!), emitidos com toda força, resultando em notas extremamente seguras e volumosas, que sempre impressionavam as platéias.


A inteligência musical e interpretativa de Sutherland, é bom que se saiba, não é tão "abertamente surpreendente" como a de Maria Callas (usada aqui como exemplo de uma artista do tipo que os alemães chamariam de kunst diva). Os sentimentos das personagens não são expressos por meio da ênfase nas palavras nem pelo uso de recursos vocais de rápido e intenso efeito, como se pode observar em cantoras como Leyla Gencer e Montserrat Caballé. Muito pelo contrário, é no fraseado e nas nuances da melodia e da voz que Sutherland molda sua atuação, usando sua espetacular musicalidade para dar um sentido emocional até mesmo aos floreios vocais. De fato, quem ouve a sua "Ah, non giunge", de La Sonnambula, não duvida da alegria de Amina, nem quem escuta sua "Ah, bello, a me ritorna" pode não sentir a paixão e a ansiedade de Norma nesse momento da ópera. O intimismo de muitas de suas interpretações mais famosas, como Violetta e Gilda, foi às vezes confundido com falta de envolvimento, justamente porque a ênfase ali estava no aspecto mais melancólico, íntimo ou nostálgico do drama.

Em 1963, Sutherland canta sua primeira Norma (foto)em Vancouver. No mesmo ano, grava a ópera completa para a DECCA. Escolhendo uma interpretação diametralmente oposta, particularmente, à de Caballé, a Norma sutherlandiana é uma sacerdotisa de fato, e não uma mulher apaixonada que se apresenta fajutamente como uma mensageira dos deuses. Seja na voz, seja no porte imponente e nobre que ela apresentava no palco, a Norma de Sutherland não parece jamais chegar ao ponto da histeria ou do ódio, enfatizando sim a dignidade ferida de uma mulher. Há mais feminilidade e capacidade de perdoar do que ódio ou neurose nessa interpretação marcante de Norma. Essa característica é especialmente audível no final da ópera, ''Deh, non volerli vittime", cuja emoção carregada poucas sabiam transmitir como Sutherland. Em 1970, Sutherland canta Norma no Metropolitan Opera, de Nova York, com Marilyn Horne e Carlo Bergonzi, obtendo um estrondoso sucesso.

Nos anos 60, Sutherland debuta ainda em outros 2 papéis que serão para sempre associados a ela: Marie, de La Fille du Régiment (foto abaixo, com Luciano Pavarotti), e Lakmé, da ópera de Léo Delibes. Marie marca a estréia consagradíssima de Sutherland em papéis cômicos. Ainda hoje, não há quem negue que, em óperas cômicas, poucas cantoras tinham o timing e a espontaneidade de Sutherland, que, infelizmente, nunca interpretou papéis como Rosina (O Barbeiro de Sevilha) - embora tenha filmado um trecho da ópera para o vídeo para crianças Who's afraid of Opera - ou Norina (Don Pasquale).

Pela voz cálida, pela expressão vocal rica e emocionante (e os seus detratores que provem o contrário!) e pela destreza vocal, Sutherland foi uma intérprete ideal do repertório italiano do Bel Canto. Como sua voz se estendia facilmente por cerca de 2 oitavas e meia e possuía uma ampla gama de harmônicos, ela se saía igualmente bem nos papéis para soprano ligeira, lírico-coloratura ou dramático-coloratura. Infelizmente, Sutherland não gravou nem interpretou alguns dos papéis verdianos mais jovens, que teriam certamente ficado perfeitos em sua voz (vide sua magnífica "Santo di patria!", de Attila, gravada em 1964).

Da mesma forma, a elegância do canto, o fraseado delicado e a expressividade sutil e mais contida eram ideais para o repertório romântico francês, no qual ela se destacou como Lakmé, Marguerite de Valois, Ophélie (Hamlet), Marguerite (Fausto), as heroínas de Os Contos de Hoffmann e Micaëla, bem como em diversas árias que ela cantou em recitais e gravou para o selo DECCA.

Por volta de 1970, a dicção de Sutherland começou a melhorar bastante, ao menos em relação ao estado a que havia chegado em 1963/64. Nesse mesmo período, sua voz ganhou, durante um curto período, um tom mais brilhante e agudo do que anteriormente. O registro médio tornou-se um pouco menos aveludado, retomando algo daquela clareza e jovialidade do início dos anos 60. Algumas notas agudas adquiriram também um rápido e belo vibrato, que tinha grande beleza expressiva.


TRECHOS DE ÁUDIO (em ordem): "Caro nome" (Rigoletto) - 1960; "Caro nome" (Rigoletto) - 1971; "Concerto para Orquestra e Soprano Coloratura", de Glière - 1968; "Salut à la France" (La Fille du Régiment) - 1968; "Già mi pasco" (Norma) - 1963; "Figlia impura di Bolena" (Maria Stuarda) - 1967; "Ah! dal sen di quella tomba" (Aroldo) com Caballé - 1980; "Ah, non giunge" (La Sonnambula) - 1961; "Ah, bello, a me ritorna" (Norma) - 1967; "Casta diva" (Norma) - 1970; "Da te questo" (Attila) - 1964; "Sombre chimère" (Les Huguenots) com Te Kanawa - 1969; "Tu m'as donnée le plus doux rêve" (Lakmé) - 1967; "Addio del passato" (La Traviata) - 1970.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Faces e fases de Joan Sutherland (1961-1962)

1961 e 1962
A transição para os anos 60


1961 e 1962 foram anos de consolidação da fama internacional conquistada com a Lucia di Lammermoor de 1959 no Covent Garden, de Londres. Foram também anos de transição entre a jovem e ascendente Joan Sutherland e a Joan Sutherland madura e diva irrefutável.

Na voz, modificações também ocorreram. Na minha opinião, a gradual mudança em direção a uma voz mais pesada e dramática como a dos anos anteriores a 1957 significa que o que houve foi uma acomodação da voz de Sutherland, que não suportaria durante muitos anos aquele canto extremamente claro e ligeiro que ela havia se disposto a fazer, como que unindo uma soprano ligeira e uma soprano dramática em uma só voz. Entre 1961 e 1962, a arte de Sutherland está ainda amadurecendo e a voz também começa a se definir.

Nesses anos, o registro médio é claramente uma transição entre o brilho, a jovialidade e a suavidade de 1960 e o tom aveludado, cremoso e redondo de 1963. Sendo assim, a voz retém a jovialidade e a clareza das notas médias ao mesmo tempo que já possui a mesma "transcendência" que ela adquiriria depois, no sentido de possuir uma voz que, segundo pessoas que a ouviam, realmente ''parecia vir de todo canto ao mesmo tempo'', o que é parcialmente audível nas gravações da soprano. O registro agudo permanece tão preciso, claro e vibrante quanto antes, embora talvez um tanto mais homogêneos. Os graves não transmitem agora tanta vulnerabilidade e feminilidade quanto antes, mas são, em compensação, mais sólidos, e também ainda não adquiriram o tom velado que logo apareceria.

Uma mudança interessante também diz respeito à dicção. A má dicção, que virou uma reclamação histórica daqueles que criticam Joan Sutherland, só começaria a aparecer por volta de 1962. Antes disso, Sutherland possuía uma dicção considerada perfeita, claríssima ao ponto de, muitas vezes, não ser necessário nem mesmo acompanhar a letra com o libreto. Curiosamente, a dicção foi piorando à medida que a voz foi ganhando uma qualidade mais cheia e envolvida ora por um belo veludo, ora por uma espécie de ''véu vocal'' que escurecia a voz.

A expressão vocal de Sutherland também parece ter mudado definitivamente nesses anos decisivos. À medida que ela foi ficando mais sob a tutela do marido Richard Bonynge, sua atuação com a voz foi ficando cada vez menos apoiada em efeitos dramáticos. Pelo contrário, a expressão das personagens foi ficando mais a cargo do fraseado, da musicalidade empregada na construção das linhas vocais e no uso sutil das cores da voz. Para essa nova concepção (que para muitos é a idéia correta de Bel Canto), o texto e o drama não podiam jamais atrapalhar a perfeição do canto, e seria basicamente através da capacidade dramática inerente à melodia que se transmitiriam todas as emoções das personagens. O efeito expressivo com as palavras é evitado, mas nem por isso as interpretações perdem sua capacidade de emocionar, pois a crescente maturidade de Sutherland permite a ela achar no próprio instrumento vocal diversos recursos dramáticos.

O timbre de Sutherland passou também a favorecer interpretações etéreas e, quando necessário, melancólicas (que alguns acham entendiantes, para falar a verdade, mas muitos acham extremamente condizentes com as heroínas belcantistas).

A coloratura praticamente sobre-humana torna-se, em 1961, ainda mais fluente e articulada, apoiada em uma musicalidade impressionante e em um legato irretocável, que a permitia cantar sem nenhuma ''quebra'' uma linha vocal que se estendesse por até 2 oitavas. Com o aprimoramento da técnica, Sutherland também se permite cantar os floreios vocais com uma delicadeza e sentido de ''despreocupação'' tão grandes que, não raro, ao ouvir suas gravações, não é sua estonteante habilidade vocal que chama a atenção, mas sim um todo musical que faz um completo sentido melódico e dramático. Ao contrário de outras divas, para quem, ao começar as passagens vocais mais intrincadas, iniciam-se verdadeiros coloratura fireworks, com Sutherland a beleza não está na capacidade de cantar (porque isso é quase que óbvio em se falando dela), mas em como ela canta todo o conjunto da música da personagem.

Em 1961, Joan Sutherland resgatou a ópera Beatrice di Tenda, de Bellini, que há mais de um século havia sido esquecida, interpretando-a em Milão e em Nova York. Em Nova York, sua performance ocorreu no dia da morte de sua mãe, Muriel. Mesmo assim, em respeito ao público, ela cantou a récita. Sua Beatrice é extremamente melancólica, o que se adequa bastante às longas linhas vocais compostas por Bellini, que ela cantou com perfeição graças ao seu legato e ao seu fôlego sem iguais.


No mesmo ano, Sutherland debutou no Metropolitan Opera (foto), de Nova York, como Lucia di Lammermoor ao lado de Richard Tucker. Um crítico disse sobre a sua Cena da Loucura: Here she allowed herself more freedom in ornamentation than previously, working out delicate traceries of figuration in and around the melodic line, stitching in a bit of petit-point staccato, coasting cleanly down a descending scale, and finally demonstrating her prize beyond price-a perfectly controlled trill that was not a mere glorified vibrato but a swift, even beat of two notes perfectly interchanged. Finally? Not quite. She ended her evening's work with a bright, firm, fully produced high E flat that is still ringing in the ear as this is written.

Em 1962, Sutherland faz parte de uma legendária produção de Gli Ugonotti, versão italiana da grand opéra de Meyerbeer Les Huguenots, interpretando Marguerite de Valois. Tendo ao lado cantoras do porte de Giulietta Simionato, Nicolai Ghiaurov, Franco Corelli e Fiorenza Cossotto, a produção se torna um dos maiores sucesso das últimas décadas no La Scala de Milão.

Em 1963, a voz de Sutherland amadureceria definitivamente e ganharia os contornos que caracterizariam sua voz nos anos 60 e mesmo depois. É bom salientar que a descrição de sua coloratura, de sua expressão vocal e de sua interpretação feitas aqui continuam a valer por toda a década de 60.

TRECHOS EM ÁUDIO (em ordem): "Ah, fors'è lui" (La Traviata) - 1962, Amsterdã; "Quando rapito in estasi" (Lucia di Lammermoor) - 1961, NY; "Regnava nel silenzio" - 1961, NY; "Deh, se un'urna è a me concessa" (Beatrice di Tenda) - 1961, Milão; "Alfin son tua" (Lucia di Lammermoor) - 1961; "Ma la sola, ahimè, son io" (Beatrice di Tenda) - 1961, Milão; "Scender nel mio petto" (Gli Ugonotti) - 1962, Milão.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Faces e fases de Joan Sutherland

1957 a 1960

No rumo da consagração


Em entrevista, Joan Sutherland disse que, para cantar suas primeiras Gildas, tentou "afinar" sua voz para que ela ganhasse o tom jovial da de Amelita Galli-Curci, cuja gravação de "Caro nome" ela havia ouvido repetidamente. Como diz Sutherland: "This was a most dangerous and foolish thing to do. I have never had a voice vaguely like hers... but the voice acquired a certain overlay of that charming singer's quality which I had to work very hard to eradicate" (''Aquela foi uma coisa extremamente perigosa e tola de se fazer. Eu nunca tive uma voz nem vagamente semelhante à dela... mas a voz adquiriu um certo "verniz" da qualidade vocal daquela cantora encantadora, o qual eu tive muito trabalho para apagar'').

Se o que ocorreu por volta de 1957 com a voz de Sutherland foi culpa ou não de Amelita Galli-Curci e sua ''Caro nome'', isso não é certo, mas essa história mostra bem como para a própria Sutherland houve uma mudança significativa na sua voz. Se, até 1956, Sutherland ainda manejava o repertório dramático, lírico-spinto e coloratura de uma só vez, é porque ela manteve os tons mais dramáticos e escuros do timbre (o registro médio aveludado e potente, os agudos meio metálicos e também muito volumosos, os graves mais que aceitáveis) ao mesmo tempo que desenvolveu um canto em tessituras mais agudas completamente flexível e brilhante como o que se esperaria de uma soprano lírico-coloratura.

Em 1957, Sutherland obtém bons sucessos em debutes como Gilda (Rigoletto), Alcina, de Händel e Madame Herz (Der Schauspieldirektor, de Mozart). Atua ainda ao lado de Ramón Vinay em sua primeira Desdêmona (Otello) e canta sua última Eva. Nesse ano, fica clara a evolução do repertório de Sutherland no rumo das coloraturas e das longas linhas vocais do Bel Canto.


A Nova Voz

Talvez por ter como exemplos cantoras como Galli-Curci, ou mesmo por motivos técnicos, uma vez que agora ela passava a "ousar" em tessituras bem mais agudas, o timbre de Sutherland sofre uma grande transformação: o registro médio torna-se extremamente claro, melífluo, brilhante e jovial; as notas mais graves se tornam menos fáceis que anteriormente, ganhando, porém, nuances que, muito favoravelmente ao novo repertório dela, expressam feminilidade e vulnerabilidade; os agudos se tornam mais vibrantes, cheios e ligeiros.

Até mais ou menos 1961, Joan Sutherland procurava, no geral, cantar as coloraturas privilegiando um canto mais trabalhado, isto é, deixando cada nota fluir de modo mais nítido e ligar-se uma à outra mais lenta e suavemente. Essa técnica permitia que sua voz, nos floreios vocais, transmitisse grande delicadeza e acurácia estilística. Como se verificará, após 1962, Sutherland preferiu floreios vocais mais virtuosísticos, rápidos e à plena voz, o que, se tirava algo do refinamento audível de sua coloratura anterior (semelhante à maneira de Callas cantá-la), era, em compensação, bastante excitante, uma vez que a fioritura era sempre feita com tremenda precisão, amplidão (o que significava um imenso volume vocal, só comparado ao das sopranos wagnerianas da época) e musicalidade.

Mas essa nova voz não servia só para o repertório de coloratura. Também em 1957 (talvez um ano dos mais decisivos da carreira de Joan Sutherland), ela faz a primeira Madame Lidoine (foto, em 1958), de Dialogues des Carmelites, em inglês, tendo Francis Poulenc supervisionando a produção. Segundo a própria Sutherland, o compositor chegou até mesmo a fazer algumas alterações na partitura para adequá-la melhor à voz agora inegavelmente angelical da soprano australiana ascendente. Da ascendência de 1957 para a fama mundial em 1959, seria um pulo.



Em 1958, as primeiras apresentações fora da Grã-Bretanha têm início. Sutherland debuta com enorme sucesso como Donna Anna, de Don Giovanni, em Vancouver, que se tornaria um de seus públicos favoritos. Canta também no oratório Samson, de Händel.
Em 1959, Sutherland é escalada para estrelar a primeira produção de Lucia di Lammermoor no Covent Garden desde 1925. Um grande evento, além de que a produção é de Franco Zeffirelli. O sucesso é imediato e internacional, levando todo o planeta (operístico, ao menos) a virar os olhos para a australiana altíssima e ruiva que canta Lucia com a flexibilidade de uma soprano ligeira e o poder de uma soprano dramática.

Como Lucia, Sutherland chega à maturidade completa como cantora: auxiliada por Franco Zeffirelli e por outros, consegue finalmente vencer totalmente a timidez que antes a atrapalhava e, como diz o próprio Zeffirelli, ''mostra a personalidade maravilhosa que ela possui''.

Com uma interpretação muito ágil, correndo pelo palco, caindo no chão, cantando deitada e tudo mais, Sutherland atinge o efeito dramático que compensa o magnetismo que não possuía ao nível de Callas. Esta, aliás, disse então a Sutherland: "Por dinheiro nenhum no mundo eu faria isso!". Elisabeth Schwarzkopf, que também acompanhou os ensaios junto com Callas, convence seu marido, diretor da EMI, a gravar Joan Sutherland como Donna Anna, o que levou a uma das mais antológicas gravações dessa ópera.

Com um timbre brilhantíssimo, prateado, riquíssimo em expressão e em harmônicos, Sutherland consegue modelar cada linha vocal da personagem com um tom ao mesmo tempo aéreo, quase de fantasia, e extremamente melancólico. Em "Il dolce suono" (talvez a música pela qual toda Lucia deveria ser avaliada, na realidade), a combinação de graves vulneráveis e vibrantes, mas sempre bem projetados, com notas médias brilhantes, amplas e repletas de cores criam um efeito expressivo espetacular, transmitindo a alternância de melancolia e jovialidade insana com perfeição. Agora ousem dizer - ou deixarem dizer - que Sutherland não era dramática!!!

Talvez sob a orientação de Tullio Serafin (que, na época, a considerou uma soprano dramática d'agilità ideal para a Lady Macbeth de Verdi, que Sutherland recusou), seu dramatismo vocal era então mais baseado em efeitos vocais, como o aumento ocasional do vibrato para exprimir medo ou insegurança, o "aclaramento" da voz para transmitir inocência ou loucura, o uso dos graves, etc.

É interessante comparar a maneira como Sutherland emite o Mi5 Bemol no final da cena da loucura de Lucia di Lammermoor em 1959 e nas performances pós-1960. Um daqueles efeitos dramáticos fica bem claro no Mi5 Bemol final da Lucia de 1959. O agudo, curiosamente, soa quase que como um grito ao mesmo tempo que é inegavelmente preciso e belo. No final da emissão do Mi5 Bemol, ela, de certa forma, ''puxa'' a voz e prolonga o agudo, tornando-o mais fino. O efeito final é interessantíssimo e pode ser visto aqui. Nos anos seguintes, ela optaria por um um agudo mais convencional. , preocupando-se mais com a beleza e o senso de facilidade no canto, o que marcaria tudo que ela faria.


Por fim, o uso de todos os harmônicos e de todas as características do timbre passa a servir completamente à música, os recursos dramáticos são utilizados com bom gosto e excelência, perfazendo uma performance irretocável e legendária. Sutherland vira uma grande diva do dia para a noite. Felizmente, essa imensa descrição elogiosa se repetiria dezenas de vezes nos anos seguintes. Até 1962, a Sutherland da voz brilhante, claríssima e prateada estrelaria em diversas casas de Ópera do mundo, em papéis como Lucia, Amina (La Sonnambula), Elvira (I Puritani), Rodelinda (foto), Donna Anna e Violetta Valéry. Após isso, uma nova mudança vocal ocorreria lentamente...

TRECHOS EM ÁUDIO (em ordem): "Caro nome" com Galli-Curci; "Mi restano le lagrime" (Alcina) - 1959; "Pâle et blonde (Hamlet) - 1960; "Ô beau pays de la Touraine" (Les Huguenots) - 1960; "Sovra il sen" (La Sonnambula) - 1960; "Sovra il sen" (La Sonnambula) - 1963; "Mes filles, voilà que s'achève" (Dialogues des Carmelites - versão inglesa) - 1957; "Il dolce suono" (Lucia di Lammermoor) - 1959; "Spargi d'amaro pianto" (Lucia di Lammeroor) - 1959; "Spargi d'amaro pianto" (Lucia di Lammeroor) - 1971.

As mutações de Joan Sutherland

Pode parecer uma certa paranóia, mas depois de eu ter ouvido umas 70 gravações completas com Joan Sutherland, eu penso existirem várias vozes ''diferentes'' ao longo dos anos. É algo certamente sutil, uma vez que a qualidade do timbre foi sempre a mesma, extremamente distinta de qualquer outra voz dos tempos recentes, o que justifica a voz dela ser quase que instantaneamente reconhecível. No entanto, mesmo para quem não ouviu muita coisa dela, as mudanças são bastante audíveis. Sendo bem ''picuinhento'' mesmo, diria que dá para reconhecer 8 fases na carreira de Sutherland, sem nenhuma mudança brusca, mas sim evoluindo de um para o outro com bastante sutileza (sinal da longevidade vocal de Sutherland).

Então vamos lá!

1947 a 1956
Os anos de aperfeiçoamento


Um período inicial em que ela se espelhava em sopranos dramáticas (leia-se, principalmente, Kirsten Flagstad, seu maior ídolo vocal) e não possuía ainda nenhuma certeza de qual repertório interpretar. O timbre refletia essa indecisão: ora extremamente leve, claro e brilhante, como o de uma soprano lírico-coloratura; ora escuro, aveludado e relativamente metálico, como o de uma soprano dramática em formação.

Sutherland era ainda uma artista em formação em meio a opiniões diversas. Os diretores do Covent Garden achavam que ela era uma soprano dramática e deveria seguir para o repertório de Wagner e Verdi; sua mãe, ela própria uma mezzo que não seguiu a carreira, insistia que ela era uma mezzo; e Richard Bonynge, com quem ela se casou em 1954, tinha certeza absoluta de que ela era a soprano dramático-coloratura que há tanto todo mundo buscava (claro, já tinham Callas, mas isso é outra história...). Aqui vocês podem ouvi-la em um de seus mais antigos (talvez até o mais antigo) registros gravados, cantando One day when we were young, de J. Strauss II, em 1948 (aos 22 anos e o timbre já era completamente sutherlandiano!).


Após ganhar uma competição de canto na Austrália, a jovem Sutherland migrou para a Grã-Bretanha. Seu primeiro papel lá foi Giorgetta, de Il Tabarro, no Royal College of Music, seguida pela Primeira Dama, de A Flauta Mágica, no Covent Garden. Durante seus anos de aprendizado no Covent Garden, Sutherland cantou de tudo: Aida, Amelia (Un Ballo in Maschera), Helmwige (A Valquíria), Antonia (Os Contos de Hoffmann), Agathe (Der Freischütz), Pamina (A Flauta Mágica), Condessa de Almaviva (As Bodas de Fígaro, foto ao lado) e vários outros. Ela também cantou Brangäne numa no ato 2 de Tristan und Isolde sob a regência de Sir John Barbirolli, assim como Vitellia em La Clemenza di Tito para a BBC, mas essa gravação está até hoje desaparecida (alguns dizem que a BBC a destruiu, o que seria uma tremenda sacanagem!).

A voz de Joan Sutherland possuía uma extensão vocal raríssima, indo desde o Sol2 até o Fá5. Segundo ela própria, no entanto, atingir o Fá5 foi sempre uma tarefa difícil para ela, embora ela tenha emitido essa nota, pelo que se sabe, em algumas ocasiões (incluindo uma La Sonnambula nos anos 60 em Londres).

Em 1955, Bonynge convenceu o Covent Garden a escalá-la para um papel de coloratura. Sutherland ganhou Olympia, de Os Contos de Hoffmann, e foi um tremendo sucesso. Sua voz, aliada ao ótimo senso de humor, ganharam a platéia. No fim desse período, Sutherland começava a se firmar como uma promissora soprano coloratura. Sutherland interpretaria ainda algumas vezes Eva, de Die Meistersinger von Nuremberg, mas, após 1958, abandonou o repertório romântico alemão, a não ser em um álbum de árias de Wagner em 1979 (ouça sua "Du bist der Lenz", de Die Walküre).

Sua voz, igualmente, alternava bastante: desde uma performance vocal agilíssima, flexível, articulada e lírica, embora com toda a potência típica de sua voz, como na ária
"No, che non sei capace", de Mozart, cantada com todo o virtuosismo e a a alegria de cantar necessários - por gravações como essa, percebe-se que a futura La Stupenda já estava preparada desde muitos anos antes da consagração; até uma performance digna de uma jugendlichen-dramatische Sopran, tipicamente romântica alemã, na qual sua voz se tornava mais metálica e aveludada (bem como relativamente velada no registro médio como voltaria a ser nos anos 70), comandando todo o canto com um legato impecável e uma grande homogeneidade de timbre, como em sua Euryanthe,ambas cantadas no mesmo ano de 1955.

Tecnicamente, dá para perceber, pelas suas gravações mais novas, que ela ainda não sabia explorar muito bem os tons e cores da voz para efeito expressivo ou de enriquecimento da linha vocal, o que ela desenvolveria nos anos seguintes. Sutherland era então uma jovem muito tímida, que não sabia se portar no palco com grande presença, o que ela desenvolveria também nos anos seguintes, uma vez que ela não era uma atriz nata.

O frescor da voz, combinado com certos tons metálicos e mais velados, já tornam a voz de Sutherland bastante distinta, sendo interessantíssimo notar como mesmo com pouco mais de 20 anos seu timbre já era bastante reconhecível. A exuberância redonda e aveludada do timbre já aparecem nas gravações de árias para soprano lírico-spinto e dramática, bem como o brilho e a incrível pureza são notórias em suas gravações de árias para coloratura. A impressão que se tem é a de que Sutherland precisava apenas ganhar experiência e lapidar mais sua inteligência musical para atingir o apogeu vocal e nada mais.

TRECHOS EM ÁUDIO (em ordem): "One day when we were young", de J. Strauss II - 1949; "Non più di fiori" (La Clemenza di Tito) - 1956; "Ich bin der erste Sängerin" (Der Schauspieldirektor) com Naida Labay e Alexander Young -1957; "Du bist der Lenz" (Der Walküre) - 1979; "No, che non sei capace", de Mozart - 1955; "Göcklein im Tale" (Euryanthe, de Weber) - 1955.

Iniciando o blog com Joan Sutherland (nada mal!)

Para quem inicia um blog sobre as maiores vozes já ouvidas neste planeta, acho que não havia melhor maneira de começar do que fazendo uma homenagem àquela que é, para mim, a maior de todas as cantoras da História (ou pelo menos da história gravada!): a australiana Joan Sutherland.

Coincidentemente ou não, Joan Sutherland (conhecida pelos seus fãs como La Stupenda) nasceu no mesmo dia que eu (7 de novembro), ou seja, talvez eu já estava predisposo a adorá-la, e realmente assim que a ouvi pela primeira vez fiquei imediatamente quase que ''assustado'' com tanta beleza. Pivete como eu era, imagina só que, como ela foi a primeira cantora de Ópera que eu ouvi, eu pensava que toda soprano tinha a voz dela! Quando vi que 99% dos cantores não têm um centésimo da sua flexibilidade, da sua segurança técnica e, claro, do seu dom natural de ter uma voz bela, passei a valorizá-la ainda mais.

Para aqueles que talvez ainda não a conheçam, acho que
esse minúsculo exemplo já deve trazer o efeito esperado!

Talvez cada um reaja de modo diferente, mas, ao ouvir um canto como esse pela primeira vez, eu demorei ainda alguns minutos para assimilar! Essa deve ter sido a reação da platéia londrina ao ouvi-la pela primeira vez na sua
legendária Lucia di Lammermoor dirigida por Franco Zeffirelli. A platéia simplesmente não devia (aliás, até então não podia) imaginar que uma cantora podia reunir, para efeito de comparação, a agilidade de Amelita Galli-Curci, o volume de Kirsten Flagstad e a técnica de Nellie Melba - todas cantoras que foram justamente grandes exemplos para Joan Sutherland. Tudo numa só voz absurdamente volumosa, rica e sem limites para o topo. O que querer mais?

Com certeza diriam musicalidade, distinção, expressividade, atuação. Pois bem, Sutherland modelava linhas vocais, mesmo as mais intrincadas, com tamanha naturalidade e leveza que, ao invés de soarem como virtuosismos compostos para "pregar uma peça" nas cantoras, os floreios pareciam um fluxo espontâneo e lógico da melodia. Nada mais belcantista que isso. Suas interpretações, mesmo que criticadas pela imprensa pela falta da profundidade e do magnetismo de Maria Callas (aliás, quem mesmo tinha a profundidade e o magnetismo de Callas?!!), marcaram época, especialmente sua hilária Marie, que ainda hoje é mencionada como exemplo de humor de primeira em Ópera. O timbre, riquíssimo em cores e nuances, podia não ter a mesma sensibilidade certeira, penetrante de uma Callas ou de uma Muzio, mas era estonteante ao mesmo tempo que variava quase que de nota em nota para dar à música a mais refinada e espontânea expressão.

A verdade é, enfim, que não há como negar que, entre por volta de 1957 a 1977, Joan Sutherland reinou imbatível como a cantora com maior potencial vocal de sua época (e quem sabe de todas as outras...). Aliás, um potencial muitíssimo bem usado, como comprovado acima!

Ao longo destes próximos dias, eu vou postar uma simples mas certamente prolixa (não tem outro jeito comigo!) análise da voz de Joan Sutherland ao longo de seus mais de 40 anos de carreira. Em todas as mensagens, eu decidi postar vários exemplos vocais para que todos possam sentir melhor o que eu estou falando, e também para que possam ter alguns bons momentos musicais (aliás, não só com Sutherland). É só clicar com o botão direito do mouse em cima do link e clicar em salvar destino como. Depois é só ouvir e analisar por você mesmo. ;-D

* TRECHOS DE ÁUDIO (em ordem): Joan Sutherland em ''Casta diva'' (Norma, de Bellini) - 1963; Joan Sutherland em ''Alfin son tua'' (Lucia di Lammermoor) - 1959; Kirsten Flagstad em ''Dich, teure Halle'' (Tannhäuser, de Wagner) - 1936; Nellie Melba em ''Clair de lune'', de Debussy - 1926; Amelita Galli-Curci em ''Io son Titania'' (Mignon); Maria Callas em "Ah, non credea mirarti" (La Sonnambula).